Regina Silveira

REGINA SILVEIRA, A ARTE DE CORRIGIR A REALIDADE

Brazil Today é uma série de quatro cadernos com cartões postais corrigidos por Regina Silveira em 1977, um dedicado às belezas naturais, outro às cidades, o terceiro aos pássaros e o quarto, aos índios do Brasil.

Esses 24 cartões referem-se a um Brasil de 1977 que é quase sem tirar nem pôr o de hoje, quatro décadas depois. Muita coisa mudou nesse tempo (77 era outro ano de chumbo da ditadura dura) mas muita coisa mudou apenas para confirmar o que escreveu Lampedusa em O leopardo, aqui visto primeiro como filme nos anos 60 sob a assinatura de Visconti: é preciso que tudo mude para que tudo fique como está. Olhar para qualquer dos cartões é ver uma imagem do Brasil tanto de 77 como de agora — nos destroços da cultura urbana empilhados por toda parte e nos abutres ou urubus sobre Brasília e nas cidades encaixotadas em seus informes edifícios cinzentos cercados de carros e nos índios obrigatoriamente idênticos a si mesmos, como espera o patrimônio histórico. Essa sensação de um eterno presente que se arrasta décadas afora é existencialmente angustiante para quem vive o país hoje. No entanto, reconforta esteticamente a ideia de que esta é uma arte em tudo contemporânea. Os anos 70 em arte são hoje; essa arte feita então é uma arte de agora. Disso sabem os museus e colecionadores do exterior que já correm atrás dos anos 70 depois de esgotarem os mananciais dos 60. Brazil Today beneficia-se de uma vantagem indevida, sim: o país de que fala, sendo outro, ainda é o mesmo. Mas, esse problema é do país, não da arte.


Para fazer os quatro cadernos, inspirados no suplemento de turismo de uma revista da época, Regina Silveira serviu-se de cartões postais comprados no
aeroporto de Congonhas perto do qual morava e que ainda era civilizado. Conta como podia comprar só o estritamente necessário: o dinheiro era pouco, os
artistas voltavam as costas ao mercado (e não esperavam que o Estado fizesse o que o mercado não fazia). Perder um cartão ou qualquer outro material por erro ou descuido era um pequeno drama econômico. Comprados, os cartões passavam por uma ampliação, nela a artista intervinha, o resultado era
reformatado (essa palavra não exista à época) para o tamanho original, impresso em serigrafia e a obra-que-não-era-obra seguia para encadernação
(receber uma garra espiral) na papelaria da esquina. Matéria prima da artista: a fotografia preexistente, o desenho à mão, a fantástica letraset (delícia dos
designers pré-computador) e alguma outra imagem tirada de livros e catálogos.


Eram os tempos áureos da apropriação de imagens de terceiros e da “intervenção crítica” sobre elas, nas palavras da artista. O “imaginário gráfico” à disposição, já imenso embora minúsculo se comparado ao de hoje, era invariavelmente mediado por “matrizes fotomecânicas” transpostas tais quais
para outros suportes e a seguir alteradas criticamente, quer dizer, no caso de Regina, alteradas zombeteira e corrosivamente. A fotografia –-a do cartão postal, um ready made para Regina, e as outras a ele acrescentadas— era apenas matéria-prima para a artista, uma commodity assim como o são o minério de ferro e o café que o Brasil ainda hoje exporta sem valor agregado. Commodity no sentido econômico e no sentido comum: uma comodidade para a artista. Essas fotos não eram escolhidas por algum valor estético ou documental, bastava que registrassem um fato. Algumas eram fornecidas pelos próprios cartões postais; outras foram tiradas, a pedido da autora, pelo artista com quem estava casada, Júlio Plaza: ele não era, porém, o autor das fotos, apenas um captador humano de imagens. A fotografia entrava como ready made, simples índice, pura fotografia –- aquela que se aliena na cultura que ela mesma gera e que não tem qualquer condição de afirmar-se sobre essa cultura, tanto que a ficha técnica dos cartões postais usados não registra o nome do fotógrafo. Nelas inexiste um sentido estético ou crítico nato, a ser acrescentado depois pela artista, à mão, com a letraset e por meio da serigrafia. Não era muito diferente o uso da fotografia por outros artistas do período; tudo estava no mesmo grau zero de significado estético: o cartão postal, a foto apressada e utilitária, a letraset.

O destino desses cartões era virarem mail art: enviados pelo correio (não havia internet ainda) para outros artistas e não-artistas, tornavam-se moeda de troca de ideias e experiências “de arte” num exemplo do desviante fazer estético marxizante cuja natureza esmiuçarei em outro lugar. Mas isso não os impedia de serem mostrados em espaços de exposição alternativos. O conjunto “Brazil Today” foi exibido pela primeira vez em 1977 no MAC USP, na mostra Poéticas Visuais, e em 1978 na Printed in Brazil organizada pela própria artista (não havia curadores ainda – não tanto e não no sentido atual; a artista, aliás, por isso mesmo, dispensa olimpicamente os curadores, o que ela nega sem convicção) e enviada por correio como um banal pacote endereçado à Other Books and So (é So, não Co) de Amsterdam. E na vez mais recente, o conjunto foi visto na Fondation Cartier de Paris, na mostra América Latina Photographs 1960 – 2013, cheia de vários dos piores clichês da arte latino-americana (inclusive os fotográficos) aos quais “Brazil Today” é uma das repousantes e excitantes exceções. O curador dessa mostra não se perguntou se estas peças de Regina (e outras do gênero) eram fotografia ou “de fotografia” e podiam ser ali vistas. Se foi tática deliberada, ótimo. Mas seu catálogo para a mostra poderia ser menos arcaicamente politizado e panfletário e discutir mais as relações entre arte e fotografia à época: o desenvolvimento da arte vem quase sempre de nuances e reflexões evidenciadas e debatidas. 

Mesmo não sendo panfleto, “Brazil Today” é ácido. E mostra maldade (malícia) estética (Schlegel), esse tipo de “beleza lógica” também vista em Nelson Leirner, Paulo Bruscki e Berna Reale. O caderno “Natural Beauties” (os títulos vêm em inglês já que a revista que os suscitou também era pra inglês ver) mostra a rampa do Palácio do Planalto, o Museu do Ipiranga e o MASP¹ sob montanhas de carros de ferro-velho, os mesmos que entram ou saem pela porta de um vagão de metrô de São Paulo. Em outro caderno, urubus e abutres e demais pássaros de mau agouro sobrevoam Rio e Brasília. No caderno das cidades, todas as imagens são de São Paulo mas o turista que por acidente aqui caísse não saberia a diferença, e de todo modo a obra de Regina não era jornalismo de turismo mas obra de arte que à época não era bem nem obra, nem de arte. E as cidades são vistas sob uma malha reticulada que as ameaça por cima ou fragmentadas e estocadas em caixas retangulares transparentes todas iguais e uniformizadoras, as mesmas que envolvem os “Indians from Brazil”, também dispostos dentro de labirintos, símbolo recorrente nesta artista. Nessa mesma série, os recursos visuais se ampliam para incluir imagens tiradas das folhas da inovadora tecnologia da letraset: num cartão, uma fila indiana de índios paramentados para alguma cerimônia são enquadrados por duas idênticas figuras masculinas de chapéu, terno, gravata e a então promíscua pasta 007. O efeito é irônico e pungente. Como nos outros três cadernos.

Essa era uma outra ideia de arte, uma arte-não-arte com dificuldades para referir-se a si mesma como não-arte ao mesmo tempo em que procurava os
espaços alternativos da arte alternativa e querendo ser arte. Um paradoxo. Não importa, a arte sempre conviveu com os paradoxos e a de Regina Silveira está repleta deles. Ela mesma distribuía, à entrada das estações de metrô, cópias de outras “obras” ou obras suas do período, como o Pudim da arte brasileira, uma forte tacapada na cabeça dos ideólogos locais da “arte nacional” que viviam buscando raízes sólidas por toda parte numa época em que já se sabia, como a artista sabia, que as raízes são sempre móveis. Hoje, o exemplar original datilografado do “Pudim” vale dinheiro (dinheiro verdadeiro, dizia León Ferrari referindo-se às notas verdes americanas, não esse que ainda hoje anda por aqui com outro nome), assim como vale dinheiro essa arte dos anos 70 que agora entra para a coleção do MoMA e outros museus do primeiro mundo (que, esse, também continua a existir).

A crítica social e política contida em “Brazil Today” é clara e evidente, embora nada panfletária – por isso mais eficaz e duradoura, já que vale hoje: os urubus
continuam voando sobre Brasília, São Paulo continua entupida de lixos variados e carroças velhas disfarçadas de carros, os índios continuam encaixotados em imaginárias caixas antropológicas e patrimoniais. A atualidade destes cadernos está vinculada ao modo de composição da artista. Quem vê a imagem de uma grande e ameaçadora ave preta voando sobre a Transmazônica em meio a uns enigmáticos traços negros indicativos de direção e que formam corredores aéreos, como um pentagrama musical, tem poucas chances de saber que esses desenhos são esquemas de voo de aves extraídos de exemplares da Scientific American, uma de tantas revistas a servir de fonte usual para a artista. Não importa: tudo isso se transforma numa alusão por vezes enigmática porém de forte fundo crítico – aos olhos da época e aos atuais. Arte contemporânea. Em 1977, Regina Silveira corrigia a realidade brasileira pintada de rosa pela ditadura militar, que punia com prisão quem “denegrisse o país no exterior”. Esses mesmos cartões postais continuam, prospectiva, retrospectiva e profeticamente, corrigindo a imagem brasileira atual.

 

teixeira coelho, dezembro 2014

 

 

¹O MASP é visto nesse cartão postal na inteireza de seu concreto aparente, quase branco de ainda tão limpo e sem as colunas vermelhas que a arquiteta, num arroubo alegórico, depois lhe impôs: a versão original era mais atraente, harmoniosa, integrada. Deveriam as obras tombadas ser protegidas contra os erros de seus criadores?

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